Hard news

Caríssima Eliana

Amigos,

No post de hoje, proponho-lhes uma disputa: HARD NEWS versus LITERÁRIO. Em qual deles você aposta as suas fichas?

As regras do jogo são bem simples: dois textos do mesmo jornal, O Estado de São Paulo, ambos sobre a  inauguração da loja Daslu, em junho de 2005.

Que o jogo comece! 🙂

TEXTO 1 – HARD NEWS – A Daslu inaugura a sua nova loja em SP

Eliana Tranchesi inaugura Daslu ao lado de Geraldo Alckmin (Foto: Divulgação)

Eliana Tranchesi inaugura Daslu ao lado de Geraldo Alckmin (Foto: Divulgação)

TEXTO 2 – JORNALISMO LITERÁRIO –

Abre as portas a nova Daslu

Fred Melo Paiva / 12 de junho de 2005

A senhora já deve ter visto a gente. Estamos aqui embaixo. Se olhar da janela em direção à Rua Funchal, vai ver um beco comprido. Se subir no heliporto da loja, vai reparar nos nossos telhados. É tudo meio disforme, uma casinha se escorando na outra, que é para não desabar. A gente quase não usa tijolo nem cimento – só um ou outro mais afortunado é que conseguiu levantar uma parede, bater a laje, fazer um reboco. A maioria de nós, como a senhora pode ver, preferiu usar madeira – quer dizer, pedaço de pau e chapa de compensado. Se a senhora consegue ver direitinho aí de cima, vai achar que a gente é bem porco. Isso porque o nosso beco está sempre meio molhado, uma água suja que corre no meio da rua. Mas, olha, não é culpa nossa não. A gente é pobre mas é limpinho. O problema é que aqui não tem rede de esgoto e são mais de 200 barracos, espalhados pelo beco, e mais oito vielas. Já viu a merda que isso dá, né? A senhora deve estar estranhando a quantidade de fio que sai daquele poste e se divide em vários outros, interligando tudo. É gato, menina. Tudo gato. E tem cachorro também. A senhora consegue ver aquele pit bull branco? É o Dólar. E o rottweiller? É o Fidel. Agora veja só que confusão: gato com cachorro, pit bull com criança, o esgoto passando no meio, música alta, vizinho fazendo churrasco na viela, todo mundo na rua em pleno dia de semana. Pois é. Isso aqui tem nome. Chama favela. E a gente gostaria de apresentar ela à senhora como uma forma de lhe dar as boas-vindas: Eliana Tranchesi, favela. Favela, Eliana Tranchesi.

A gente sabe que quando a senhora abriu a sua loja a senhora fez um tour com o pessoal para apresentar o prédio. A senhora, não – a filha do governador. Então a gente vai fazer um tour com a senhora aqui na favela. Faça o seguinte: desça daí e venha de a pé. O nosso beco chama Rua Coliseu e é a primeira à direita depois da porta da Daslu. Bem na esquina, a senhora vai encontrar o Genivaldo Francisco, o Geninho. O Geninho é tomador de conta dos carros que ele estaciona no beco. As vagas são todas dele, e é por isso que ele possui um cone sempre à mão. Ele tem 44 anos e mora na favela há 36. Fica o dia inteiro sentado numa cadeira preta bem na entradinha da favela. Diz ele que na loja da senhora “só entra grã-fino, só carrão, BMW etc. e tal”. É que ele tá ali, sempre de olho. “O pessoal não é fraco, não”, ele fala. A senhora não vai ter problemas para identificar o Geninho. Ele só anda bem arrumado, sempre na estica. A senhora, que gosta de moda, pode até puxar conversa. Ele vai explicar para a senhora que gosta mesmo é de camisa social. E que está sempre de gravata “porque o pessoal que estaciona comigo é de um nível um pouco elevado”. O Geninho tem uma particularidade. Ele sabe essa história do Coliseu, que vem a ser o nome da nossa rua: “Diz que tinha um Coliseu lá nos Estados Unidos, ou por aí afora. Segundo eu tô sabendo, era onde eles pegavam uns evangélicos e davam para os leões. Isso se eu não estiver equivocado…”

O Geninho, senhora, o Geninho era “mindingo”. Foi viciado em crack durante dez anos. Daí, diz ele, “Deus me tirou do lamaçal do pecado, da pinga, da maconha”. Isso foi há sete anos, e portanto a senhora pode ficar tranqüila que o Geninho é igual o Fidel: ele não morde. Então pode ir entrando. À sua direita, logo na entrada do beco, tem uma barraquinha de pastel. R$ 1,30, e a senhora ganha um copo de suco de maracujá. Pode comer, que a gente garante. Porque a gente soube que no dia da inauguração da sua loja a senhora serviu uma comida lá que caiu meio estranha – parece que deu uma caganeira nos garçons, não foi isso? Pois é, aqui a senhora pode mandar ver o pastel do seu Venuto. Depois a senhora conta pra gente.

Vem vindo, senhora, vem vindo. Pode chafurdar o seu saltinho na lama que não tem nada, não. A próxima parada é o bar do Assis, à sua direita. (Aqui tudo fica à direita, porque à esquerda tem um muro que vai de ponta a ponta.) O Assis é o seguinte: Assis Monteiro da Silva, 47 anos, 25 de favela, 18 de boteco. “Quando eu cheguei aqui, era tudo alcalipto, tudo mango. Aqui bem no meio tinha um rio, e pra passar a gente punha umas tauba. Pra fazer os barraco aqui, nós é que aterremo tudo. Quando chovia, ih, mano…” Eu vou traduzir para a senhora. Alcalipto é eucalipto; mango é mangue; tauba é tábua; aterremo é aterramos. Agora, a gente soube que na loja da senhora tem um “Daslu Gym”, uma “Niketown” e um “dermocenter”. A gente também deu uma olhadinha na revista da sua loja, que um repórter trouxe aqui. Tem um negócio assim: “Getty girlie. Acessórios delirantes, desejos necessários e pequenos anseios femininos. Tudo é must have, sonho de wardrobe“. Tem uma outra: “Soup works. O melhor diner d hiver começa com um bom consommé. A seguir, composições ideais para uma entrée superbe”. Depois a senhora traduz pra gente, tá?

Quando a senhora encontrar o Assis (ele está sempre de bermuda e tem uma barriga grande), pergunta para ele como era a Daslu: “Aí agora onde tem o shopping, aí era uma lagoa, mano. Nós peguemo muito preá aí nessa Daslu, muito calango, umas abóbora grande. No tempo que a gente não tinha o que comer, comia os preá e os calango. Era legal, mano, era muito legal”. A senhora vai devagar com o Assis, porque ele tem umas idéias aí. “Eu tinha curiosidade de entrar aí nessa Daslu. Mas eu nunca entrei nem pode nóis entrar. Quando eu fico sabendo que tem lá um casaco de R$ 50 mil, lógico que dá uma revolta em nós tudo que é pobre. Porque a gente não arruma porra nenhuma, né, véio? E aí tem um casaco que custa o preço do nosso barraco? De tanto helicóptero, no dia da inauguração isso aqui parecia mais aeroporto. Pousava um, vinha outro; saía o outro, chegava um. O Brasil é assim mesmo.” Olha, a senhora desculpa essas idéias aí do Assis – afinal, entre um e outro preá, ele já consumiu alguma coisa lá na Daslu.

Pois é. A propósito dessa revolta aí que algumas pessoas sentem, a gente viu uma entrevista da senhora que tocou muito a gente. A senhora disse que a nossa elite está mudando, que está muito mais consciente da situação do País. A senhora disse também que o exemplo que a senhora dá é muito bom. A gente achou isso maravilhoso. Mas a gente reparou uma coisa, que eu vou te falar… parece até coisa de jornalista. Antes de cada pergunta, aparecia uma sigla: CC, de CartaCapital, a revista que entrevistou a senhora. Antes das suas respostas, aparecia outra sigla: ET. A gente sabe que é da senhora, Eliana Tranchesi. Mas fica parecendo que a senhora é de outro mundo…

A senhora é do mesmo mundo que a gente. Quer ver? Tá lá na entrevista: a senhora não estudou sociologia porque o pai da senhora tinha medo da senhora ser presa. E a senhora acredita que aqui na nossa favela tinha uma mulher que estava presa? Presa de verdade. É por isso que a senhora tem de apertar o passo e vir aqui no fundo do beco – a Fernanda acaba de ser libertada, saiu ontem em liberdade condicional. Então tá rolando um churrasco de “capa de filé com filé miau, salada de alface e maionese”. A senhora já ouviu falar na Fernanda. Fernanda Maria de Jesus, a Miss Penitenciária, eleita em novembro do ano passado. Ela cumpriu três anos de cadeia e não foi porque estudou sociologia. Foi tráfico mesmo, o que não deixa de ser isso aí.

A Fernanda é um dos 17 filhos da dona Amazina Maria de Jesus, de 63 anos, a moradora mais antiga da Favela Funchal – “veve aqui há 42 anos”. “Quando eu cheguei da Bahia, aqui tinha matagal e cobra. Não tinha luz e a gente usava lampião. Os caminhões de entulho jogavam lixo. Aí a gente limpou tudo e o meu marido construiu um barraco de madeira. Aí pegou fogo no barraco – nuns 40 barracos. A gente construiu outro.” O barraco da dona Amazina é um clássico aqui da favela: dois quartos embaixo, dois em cima e um banheiro. Dona Amazina, que ainda não sabe se o nome dela é com s ou com z, trabalhou sempre na faxina. É muito comum por aqui, da mesma forma que é muito comum o pessoal que trabalha na construção civil. A senhora sabia que 40 pessoas da favela trabalharam nas obras da Daslu? Quarenta dasluzetos.

Dos 17 filhos da dona Amazina, a senhora acredita que já morreram quatro? Não foi tiro nem foi droga – foi doença. A Marisete, que é uma das filhas dela, tem um barraco no fundo do beco. Nasceu na favela há 40 anos. Não nasceu no hospital – nasceu na favela em dia de chuva, “a parteira com a água batendo na altura do peito”. Marisete é a fazedora de churrasco, a promotora das noites de bingo, a dona do boteco mais festejado da favela. Ela jura que aqui embaixo é melhor do que aí em cima. Diz ela que “nós somos mais felizes porque a gente sai e faz o que quer”. Não sei se é o caso da senhora, mas diz a Marisete que vocês só “ficam presos dentro de casa ou dentro do carro”. Por falar em ficar preso, a Fernanda – a que foi Miss Penitenciária -, ela tem uma opinião sobre a arquitetura da Daslu. A gente achou importante falar para a senhora porque a Fernanda sabe muito bem do que está falando. Então não vá tomar a gente como mau vizinho. Mas a Fernanda acha que o prédio da Daslu “parece um pavilhão de cadeia, meio sinistro”. Agora, o pavilhão da senhora é dez, viu?

“Eu enxergo essa construção como uma hipocrisia. Como podem fazer uma coisa com tanto luxo, tanta grandeza, tanto dinheiro? Será que isso não constrange? Esses dois mundos separados só pelo muro, e nosso presidente não faz nada? Você tem que ter uma cabeça muito boa para dizer ‘aquilo não me pertence’. Você sabe o que é trabalhar o mês inteiro e não suprir o alimento da casa? Sabe o que é trabalhar com fome? O governador entrou lá. Por que não entrou aqui?”

Ih, senhora, a irmã da Marisete, a Rosana, parece que tem as mesmas idéias do Assis. Liga, não. Se aprochegue aí no churrasquinho da Fernanda. Espero que a senhora tenha gostado da nossa casa. Se precisar de alguma coisa, tamo aqui embaixo. É só a senhora chamar.

Depois da inauguração para convidados no fim de semana passado, a nova Daslu foi aberta ao público. Às 10 horas da manhã, havia apenas uma discreta fila de carros na entrada da loja. No fim do dia, grifes como Louis Vuitton já registravam boas vendas.

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